sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O Conto do Conto



Capítulo I


A boa norma diria, se caso fosse ouvida, que é imprescindível não destruir a expectativa e, conseqüentemente, a simpatia do leitor, adiantando-lhe certos elementos da narrativa. Como o autor não quer surpreendê-lo de forma alguma, caro leitor, não dirá então que poderia criar um conto onde a mocinha de olhar lânguido se apaixona desesperadamente por um cavaleiro de incontáveis virtudes, que certamente enfrentaria mil obstáculos por ela, para finalmente, sob a luz cândida do luar, selarem seu amor com um beijo arrebatador, arrancando lágrimas às leitoras românticas.
            Este recriador de mundos poderia também lhe confidenciar, leitor melancólico e insone, a história de um rapaz desafortunado que, desiludido com a vida pela nefasta ação de um amor não correspondido, resolve dar fim à sua amarga existência.
            Para você, caro amigo, que não gostaria de tais sentimentalidades banais e ultrapassadas, o autor também não lhe adiantará que o conto a ser narrado não apresentará mocinhos galantes nem donzelas apaixonadas. As personagens serão como você e eu, massas disformes e desprovidas de qualidade, a não ser a de continuar sobrevivendo. Não querido leitor, isto não será feito.


Capítulo II

            Ninguém poderia adivinhar, nem mesmo você, leitor, o que se passava pela mente daquele rapaz, ao vê-lo caminhar pela rua: cabeça baixa, olhar soturno e as mãos no bolso a mover-se como se procurassem uma resposta. Muitos diriam que ele se preocupava com seu amor perdido, outros, porém, apostariam que o motivo de seu pesar era a falta de dinheiro, tão comum a todos nessa época. Mas o que não poderiam adivinhar é que por trás daquele rapaz formoso, de vinte e poucos anos e trajado elegantemente, até mesmo um pouco formal demais para a idade, estava a alma de um escritor.
            Seu nome era João Mendonça, alcunha esta escolhida por seu padrinho, de quem também herdara o gosto pelas letras. Desde muito pequeno agradava com seus escritos: as professoras liam seus textos em voz alta, para seu deleite. Já adolescente ganhara dois concursos para jovens escritores, sendo o prêmio de um deles uma bolsa de estudos em uma conceituada academia de Letras. Até aqui, leitor, você deve estar supondo que João será o herói típico: bonito, inteligente e com um futuro promissor. O que lhe incomoda, impaciente amigo, é não saber ainda o que preocupa nossa personagem. Digo nossa, porque deixou de ser do autor e passou a ser sua também, no momento em que você pousou a vista sobre essas páginas.
            Cursando o último ano do curso, o jovem escritor era tido como um dos melhores alunos e um promissor contista. Entretanto um seu professor propusera à turma a elaboração de um conto machadiano. Mas este não deveria apenas citar ou remeter a um conto de Machado de Assis; tal conto teria de ser fidelíssimo ao estilo do Bruxo do Cosme Velho de forma que se encontrado anônimo, a obra poderia ser atribuída ao escritor realista.
            Era nisso que João pensava naquele dia e nos últimos seis meses. Se alguém daquele curso era capaz de tal feito, esse alguém era ele. Mas, para seu desespero, não conseguira pensar em nada; a idéia para o conto simplesmente não ocorria. Havia estudado a fundo o estilo machadiano, sua ironia, o diálogo com leitor e seus ardis psicológicos, mas não conseguia. Havia rasgado centenas de rascunhos e uma vez, em um ataque de fúria ante sua infecundidade literária, chegou a destruir um exemplar antigo de “Contos Fluminenses”. Como poderia ele reproduzir a sutileza de “Uns Braços” ou a força de “O Enfermeiro”?
O tempo foi passando e sua agonia crescia. Agora a apenas cinco dias do prazo final, João apresentava grandes olheiras, que eram fruto de quase um mês de noites intranqüilas. Não conseguia mais ter tranqüilidade, só o que lhe interessava era aquele maldito conto que não vinha.
           

Capítulo III


Há muito, seus colegas de turma haviam percebido seu calvário, e uma garota em especial estava bastante preocupada. Graça era uma moça muito reservada que quase não tinha amigos; Não era bonita, fato este realçado pela sua escolha vestual. Usava sempre roupas de tons azuis e muito maiores que seu corpo, escondendo assim seus já poucos encantos. Nunca fora uma aluna brilhante, mas, sempre muito esforçada, conseguia boas notas. A moça orgulhava-se disso. Pois queria impressionar João, já que, desde a vez primeira que o vira, interessara-se por ele. Sempre confiante e poderoso, o jovem contista sempre sabia o que fazer.  Mas algo havia acontecido, andava triste e desanimado como se alguém tivesse lhe arrancando algo.
Você, sagaz leitor, já deve ter percebido que Graça é praticamente o oposto de João, mas não se equivoque achando que essa é uma daquelas histórias onde os opostos se atraem, e tudo termina bem.
            Respirando fundo, a ansiosa moça tomou coragem e sentou na cadeira ao lado de onde João estava e lhe perguntou:
--Anda tudo bem com você? Tenho observado-lhe; anda distraído e diferente.
--Certamente que sim; só estou preocupado com o conto do Machado, ainda não o terminei.
--Mas o prazo fatal é sexta feira, até já terminei o meu.
--Você já fez o seu? Mas como? Sobre o que escreveu?
-- Se você quiser lê-lo e me ajudar em alguma coisa, eu agradeço. Afinal, ninguém aqui escreve melhor que você. Sou sua fã.
            João, com um aceno de cabeça, pegou as folhas das mãos da moça. Sem deixar de reparar que as unhas dela estavam feias e por fazer. Despediu-se e a caminho de sua casa leu o conto e, para sua surpresa, era excelente. Carregado de estilo machadiano, a obra era sobre um humilde sapateiro que tinha o sonho de conquistar a mulher mais rica da cidade valendo-se de um sapato de verniz, que ele nunca conseguira fazer. A crítica social era bem pautada por uma ironia sutil e muito eficaz; o sapato de verniz remetia àquele cristalino de Cinderela, representando, porém, os desejos do sapateiro e não os da mulher para quem deveriam ter sido feitos. Uma espécie de conto de fadas às avessas e sem final feliz. Como ele não havia pensado nisso, tão simples e tão perfeito? Tinha certeza, agora com aquela idéia que outras apareceriam em sua cabeça. Era mera questão de tempo. Mas não foi bem assim, seu sono continuou intranqüilo e sua mente vazia.
           


Capítulo IV

Faltando apenas um dia para o prazo final, sem ter nenhuma linha escrita, João se aproximou de Graça para devolver-lhe o conto com algumas correções gramaticais.
--Seu conto está muito bom, somente corrigi alguns detalhes sem importância. Nada que lhe comprometesse.
--Muito obrigada, estou ansiosa para ler o seu. Deve estar divino.
--Infelizmente não consegui terminar, não entregarei nada. E para meu infortúnio, ainda tenho um nome a zelar.
--É verdade, todo mundo vai ficar decepcionado. Todos achavam que o seu seria o melhor conto. É uma pena, se houvesse algum meio de o ajudar...
--Mas há! Chequei sua nota, está muito boa. Não é nem preciso entregar o conto para que você passe nessa disciplina, sendo assim, você poderia me cedê-lo, impedindo assim que eu manche minha reputação.
--Mas... Meu conto está ruim para o teu nível. Tal coisa não é digna de levar teu nome.
--Imagine! Você é uma das pessoas mais inteligentes da turma... Já há tempos quero te conhecer melhor. Não poderia haver ocasião mais propícia para isso.
            E frente ao argênteo sorriso que João lhe dera, Graça aceitou o engodo. Afinal teria tudo o que sempre quisera: uma chance com seu jovem escritor. Acertado todos os pormenores, o conto foi entregue. Encontraram-se no fim de semana, e, para a surpresa de João, Graça mostrou-se muito interessante e carinhosa. Deram-se muito bem, conversaram por horas em meio á beijos e afagos.
            Na véspera da avaliação do conto, João dormiu como não dormia há tempos. Estava feliz, havia conseguido o conto e, além disso, encontrado alguém com quem poderia ter um longo relacionamento. A caminho da Academia parou para comprar flores para Graça. Lá chegando encontrou somente a bela moça com olhar sério e seu professor na sala.
--Pode entrar senhor João! Era com o senhor mesmo que queria falar. Seu conto está maravilhoso, mas tenho uma dúvida. Algumas pessoas disseram-me ter ouvido que quem o compusera foi a Graça. Isto é verdade?
--O que se passa aqui, professor?
--Disse à sua colega de turma, que se realmente fosse ela a autora do conto, a Academia conceder-lhe-ia bolsa de estudos integral, assim como a sua. Ela então me indicou que não responderia nada, que o assunto seria com o senhor.
            João olhou para Graça, os olhos dela implorando pela verdade. Seria uma grande prova de amor da parte dele. Olhou para o professor e depois para seus pés. O que fazer? Não poderia assumir o erro. E sua moral, seu futuro? Mas também não poderia fazer isso com a pessoa que tinha o ajudado, e, que lhe contara como tinha que trabalhar em uma sapataria para poder pagar a mensalidade. Foi então que se decidiu: impondo firmeza à voz, disse ao professor que era óbvio que o conto era dele, Graça não seria capaz de tamanha proeza poética. Tendo dito isso foi embora sem olhar para trás, mas mesmo assim pôde ouvir o choro sufocado da moça.
Já no portão, enquanto pensava que nunca conseguiria, por mais que tentasse, criar algo como um conto machadiano, jogou o ramalhete de flores em uma lata de lixo próxima. E saiu para uma noite fria e vazia onde não havia banda alguma para  seguir.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Líricos

Postei uma porção de poemas que compreendem várias fases da minha vida.
Da contestação artística, a busca por identidade até os mais terríveis rompantes românticos.
Dos arroubos adolescentes à maturidade hiper-realista.
Alguns desordenados outros engessadamente fixos. Uns frios e outros febris.
Esse sou eu.

Destino



Pudera eu, simples grão de areia na ampulheta infinita do tempo,
Me libertar dessas amarras que a tudo destroem.

Pudera eu derrota-lo, imenso colosso que a tudo devora.
Bradar-lhe que me devolva minha alma,
Que por traição do acaso roubou.

Mas só posso amaldiçoa-lo por me tornar
esse deplorável e incompleto espantalho
Cujo maior tormento é não ter seus olhos,
Lindo Anjo, para me iluminar.

Seu doce sorriso para me guiar
Sua alva pele para me cobrir
Seu santificado amor para me salvar

Somos almas gêmeas que não se pode dividir
E meu Amor, quando você o descobrir
Poderá finalmente me perdoar

Pássaros



Quando há trevas no coração
Ao corvo só resta lamentar
Nem mais uma triste canção
Ao sábia resta para cantar

Quando só nos resta solidão
 E ao albatroz horrores mostrar
Como se fosse uma maldição
O perdigão perde pena de voar

Mas as flores voltam a crescer
E como uma fênix ressurgida,
De novo recomeço a viver.

De um pesadelo consigo acordar
E graças a meu formoso cisne
Posso agora voltar a sonhar

Soneto





Coração me corroendo, sacro verme
Em meio às ruínas salva nossas almas.
Mesmo gostando quando tu me chamas
Piedade, te suplico que deixe-me.

Anjo, sua graça sobre mim derrame
Gravando no meu peito santos traumas
Que eu me entregue a seus pés só tu me clamas
Gavião que arrebata, Ó, prenda-me!

Tão hipnótica quanto a luz do luar
Por que coisa tão pura me faz sofrer
Se uma das coisas mais simples é amar?

Tão perigosa quanto o vasto mar
Quem é dono da essência da mulher
Se ter olhos abertos é só sonhar?

Porquinhos

Porquinho-da-Índia

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.
                                                        Manuel Bandeira










Quando tinha seis anos ganhei um porquinho da índia.
Meu porquinho era meio estranho
Quando eu ia dormir ele ficava me espreitando,
Como se só esperasse que eu adormecesse para me fazer algum mal.

Mas eu o amava, fazia de tudo por ele.
Pagava t.v a cabo, academia e cabeleireiro.
Passava roupa e topava programa chato
E o desgraçado nem ligava pra mim.

Eu não conseguia entender por que ele fazia isso,
Seria ele esquizofrênico? Hipocondríaco? Ou outro desses nomes estranhos?
E eu sofria! Como sofria quando aqueles olhinhos de roedor não me olhavam.
O tempo passou e ele nada de reconhecer minhas ternurinhas.

Resolvi então o deixar sem comida ou água,
Sem Novela e sem jornal limpo, nada mais de Friends.
Nada adiantou, ele continuava a me esnobar,
Aquela maldita bola de pêlo do inferno.

Um belo dia acordei e lá estava ele, dormindo tranqüilo em sua gaiola,
Seu sono tinha um ar angelical e sossegado, acho que até sonhava.
Lembrei dos poucos momentos felizes que tivemos juntos,
Então agarrei a infernal criatura e lhe quebrei o pescoço.

Digestão


Minha poesia não vem do coração
Esse amontoado de músculo sem muita serventia
Que nos cega e nos transforma em crianças novamente
Crianças ingênuas brincando com um escorpião numa caixa de areia

Minha poesia não vem da cabeça
Peça tão obsoleta quanto o velho batedor
A razão é uma maldição em um mundo de caos
Cientistas idiotas tentando entender os mistérios da alma humana

Minha poesia não vem do suor
Não cato pedra em feijão, com pedra é mais gostoso
Quero antes perder meus dentes e ser banguela mastigando pedra
Do que só comer o selecionado, preparado por um chef famoso

Minha poesia não vem do gênio
Não transcendo, nem beijo o dragão e nunca tomei absinto
Meu gênio é a hipocrisia, a dualidade de quem se julga inteiro
 Achar-se dentro de um túnel escuro sem luz no final, sem saber como chegou lá

Minha poesia vem do estômago
Mas não o estômago Camiliano de Silvestre da Silva
Meu estômago é acido, revolto e imprevisível
Não escrevo, apenas vomito o que comi.

Homo Sapiens



Não quero ser um homem moderno. Digital, plugado e analógico
Quero me despedir em vez de fazer log off
Quero ter uma conversa não um Chat
Quero ter um nome não um nick

Não quero ser um homem clássico. Animal, valvulado e antológico
Quero pertencer a uma família não a uma casa
Quero dizer o que penso sem levar prego na língua
Quero o direito de não ter que escolher um Deus

Não quero ser um homem moderno. Atual, sufocado e paranóico
Quero ter um lar em vez de uma home page
Quero uma mulher de carne em vez de polígonos
Quero um amigo não um psicólogo da empresa

Não quero ser um homem clássico. Temporal, alienado e cenozóico
Quero ir a um médico em vez de sofrer uma sangria
Quero gritar que a terra é redonda sem ser preso
Quero um amigo não um vassalo puxa saco

Quero o direito de não saber o quero
Não quero ser eu
Mas também não quero ser outro

Não posso ser um homem moderno ou clássico
Uma besta peluda ou uma máquina sem alma
Sem primeiro ser um Homem

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Animal





     A pesonagem de Kafka, Gregor Samsa, levava uma vida infeliz e sem sentido até acordar transformado em um inseto. Já a prostituta protagonista de Truismes, da francesa Marie Darrieussecq, era um objeto sexual sem importância, até que sem explicação tornou-se uma porca.
     Era o que pensava Andrade enquanto caminhava vagarosamente pela avenida Rio Branco em direção ao largo do Paissandu. Ia lentamente pensando em como esse pensamento acabou lhe levando à situação mais enstranha de sua vida, enquanto passava pelos inúmeros cinemas pôrnos-dois-filmes-por-um que infestavam a grande avenida, com seu canteiro central e centenas de carros naquele começo de tarde.
     Essa história de transformação de homem em bicho não era exclusividade dos europeus, Moacyr Scliar escreveu sobre um menino que nasceu centauro e se submeteu à uma  terrível operação que lhe arrancou metade do corpo, assim o transformando num homem “normal”, infeliz e preocupado. A semelhança entre os casos literários não é a toa, ser animal era bem melhor do que ser um ser humano. As personagens  mostram uma sociedade mesquinha e insensível, completa de seres hipócritas e individualistas, que se auto denominam humanos. Elas estavam muito melhor como animais, se passaram por dificuldade, foi pela falta de aceitação das pessoas “normais” em respeitar algo diferente. Como bichos não precisavam se preocupar com contas, divórcio, aposentadoria e moda. Só obedeciam à seus instintos mais básicos.
     Quando voltou a sí, notou que já havia chego ao seu destino. Estava agora na praça, onde  vendedores ambulantes anunciavam seus produtos, dividindo espaço com as prostitutas que chegam cedo naquele lugar. No centro da praça podia-se ver a pequena capela, que pintada de amarelo já precisava de reparos. Escolheu  um banco que parecia mais limpo e sentou-se, passando a fazer o que ansiosamente planejara. Observar os pombos.
     Olhando os imensos e gordos pombos da praça, que zanzavam de cá pra lá a procura de comida, lembrou-se de como tudo começou, como a idéia de se tornar um animal lhe surgiu pela primeira vez.
      Para ele, que foi tão maltratado e humilhado por toda sua vida, os livros que lera lhe mostravam uma saída. Desde pequeno sempre havia sido feio. Baixo e com orelhas de abano, sempre foi um alvo em potencial para as brincadeiras na escola. Roubavam seu lanche, lhe puxavam a cueca e lhe batiam se não fizesse os deveres de casa para eles. Seus pais sempre omissos só pensanvam onde gastar melhor o dinheiro que ganhavam. Seu pai como contador de uma multi-nacional, e sua mãe como respeitada advogada. Já na adolescencia, seus problemas haviam aumentado. Seu rosto coberto de espinhas lhe rendeu vários apelidos humilhantes que afastavam da cabeça de qualquer menina, por mais louca, feia ou esquisita que fosse, a idéia de ficar com ele. Sempre sem amigos, foi envelhecendo em meio a significativa quantidade de dinheiro que seus pais lhe deixaram, após morrerem em um acidente de carro, sem deixar a menor saudade nele.
Depois dos trinta, conseguiu se casar com uma linda mulher, que obviamente só estava interessada em seu dinheiro. Após seis meses de um casamento de faz de conta, a única vez que haviam dormido juntos fora na lua de mel, Andrade chegou mais cedo em casa e pegou a esposa, era assim que ele gostava de chama-la, com o limpador de piscina na cama. Depois de um divórcio trabalhoso e cansativo,  sua “esposa” lhe arrancou metade de seu dinheiro, que seria bem gasto ao lado do limpador de piscina em alguma ilha do Caribe. Se tornou cada vez mais recluso e anti-social, até que certo dia lhe ocorreu a idéia de se tornar um animal. Sem as preocupações fúteis dos homens ele seria feliz, não havia descriminação entre os bichos, ele poderia ser um indivíduo normal. Deveria existir um jeito, e se existisse ele conseguiria, nem que tivesse que usar todo seu dinheiro para isso.
     Contratou uma firma carissíma de pesquisa, a incubindo de descobrir um meio de um homem se tornar um animal. Pediu sigilo total, pois as pessoas não aceitavam muito bem sua idéia, Lhe chamavam de louco, mas é maluquice querer ter uma vida melhor? Já a firma não fez perguntas, estavam acostumados com ricaços malucos e seus pedidos loucos.
     Após três meses de pesquisa, que para Andrade pareceram séculos, chegaram ao resultado. Existia na Europa alguns cientistas que faziam experiências de clonagem misturando genes humanos com o de animais. Havia até o caso de uma menininha que brilhava no escuro por causa dos genes de uma espécie de água viva que tem essa propriedade. Mas ele não queria brilhar no escuro, ele queria ser um animal completo, sem o menor traço de lembrança que havia sido um homem. Não queria manter a consciência humana como as personagens literárias que o inspiraram. Descartada a hipótese de clonagem, para isso ele teria que nascer de novo, o que não estava em seus planos, só sobraram as lendas. Por todo o mundo havia lendas e relatos de casos de metamorfose humana em animal. Os pesquisadores começaram com o Sasquatch, passando pelas sereias, harpias, mulas sem cabeça até que encontraram o que procuravam.
     Investigando o mito do lobisomem chegaram até as tribos indígenas norte americanas, que acreditavam que certos shamans tinham o poder de se transformar em animal, eles lhe davam o nome de Manitu. Sabendo disso, Andrade se entusiasmou e partiu em busca dos índios.
     Durante um ano e meio ele passou vivendo entre os pouquíssimos índios que ainda restavam. Cada vez mais obcecado, distribuia montes de dinheiro a quem lhe falasse sobre o assunto. Muitos montes de dinheiro mais tarde, chegou até um velho shaman que vivia em Nova Yorque.
     Perguntando e distribuindo mais dinheiro descobriu que ele morava em  um prédio situado em um bairro barra pesada. Se ele não tivesse dispensado todos seus seguranças, com certeza eles diriam que seria loucura ir até lá. Com certeza tinha tomado a atitude correta ao se livrar deles, estava cheio das pessoas dizerem que ele era louco. Assim pensando chegou até o lugar, um prédio velho onde mal se podia  adivinhar a cor que um dia pousara ali, crianças brincavam na entrada e nos corredores enquanto homens e mulheres ficavam à janela do pombal observando o vazio. Cego por seu desejo o pequeno homem sobe as escadas até o apartamento certo. Uma imensa cabeça de alce empalhada pendurada em cima da porta o olha com ar abobalhado. Após bater, a porta é aberta por um velho de idade indecifrável, usando surradas calças Jeans, uma jaqueta do Yanques e um longo cabelo branco preso em uma trança.
      O velho lhe conta que descende de um grande shaman Navajo, e poderia ajudá-lo. Seu antepassado lhe ensinara o segredo da transformação, mas esse ritual requeria muita concentração da parte dele, o que era impossível pois estava preocupado com seu aluguel atrasado, e também não gostava de morar ali. Os espíritos lhe diziam que tinha que voltar para o mato, para a natureza. No mesmo instante em que ouviu isso, o incontrolável homenzinho lhe prometeu todo seu dinheiro. Como animal não precisaria dos já poucos milhões que dispunha, com esse dinheiro o velho poderia ajudar outras pessoas a se libertarem.
     Dois dias depois de Andrade ter transferido quase todo seu dinheiro, deixou o suficiente para uma passagem para o Brasil, na conta do índio, este lhe entregou um medalhão grosseiramente feito em argila, cujo desenho lembrava um pássaro, e lhe deu as seguintes instruções. Ele deveria olhar fixamente para o animal que gostaria de se tornar e quebrar com as duas mãos o amuleto, instantaneamente se transformaria nele.
      Saindo penosamente de suas lembranças retornou ao imundo centro de São Paulo. Continuava a olhar os pombos, já havia escolhido o seu. Um grande pombo cinza que com o peito estufado rondava uma fêmea. Estava certo em sua escolha, seria um deles. Primeiramente pensou em ser uma águia, imponente e linda, mas lembrou-se que elas estavam em extinção. Depois de todo esse trabalho não seria justo se transformar em um pássaro para levar um tiro e acabar na sala de algum colecionador idiota. Foi aí que pensou nas pombas, eram livres como os outros pássaros, não tinham predadores naturais na cidade e com certeza não eram alvo do ódio ou da ganância humana, a maioria das pessoas gostavam de pombos. E ele ainda teria o benefício de estar sempre perto dos humanos para lembrar-se de como era livre e feliz, enquanto assistiria  à algum executivo apressado e careca do alto de uma árvore.
     Com o medalhão na mão foi se preparando para o grande momento. Mas no instante em que partiria o objeto, o pombo escolhido vôou para o outro lado da rua que cercava a praça. Fixando novamente seu olhar nele, partiu sem dificuldade o sagrado artefato.
     Toda sua vida lhe passa pela cabeça como uma descarga elétrica, enquanto sente um formigamento em suas pernas e braços. Com certeza já estaria mudando. Seus olhos se enchem de lágrimas, finalmente ele seria feliz, livre. Ninguém mais abusaria ou o humilharia de novo, já podia sentir seus olhos mudando, um novo mundo se abria para ele. Olhando o céu cinzento e pesado de São Paulo, que para ele parecia de um azul celestial, se levantou demoradamente do banco e passou a caminhar em direção ao outro lado da rua, ao pombo que em breve seria seu companheiro de liberdade.
     No momento  em que chega ao meio da rua, um carro do ano o acerta na cintura a toda velocidade. Seu motorista, um gerente de banco, estava atrasado para o fechamento da agência, teve que ir para casa naquela tarde para cuidar da filha que estava doente. Acelerou um pouco mais do que devia e acabou atropelando um sujeito estranho que parecia atravessar a rua como se estivesse sonâmbulo.
     Com a forte pancada do capô em sua cintura, o corpo de Andrade foi jogado para o alto, por cima do carro. No momento em que seu corpo estava suspenso no ar, ele acreditou estar voando, sentia o vento passar por seu rosto lhe libertando a alma, finalmente sua transformação terminara.
     Após aquele libertador vôo atingiu o asfalto com a cabeça, lhe causando uma imensa dor, que atribuiu ao final da transformação. Caído em meio á uma poça de sangue que aumentava assim como o número de curiosos ao seu redor, passou a olhar os arredores limitado ao pouco movimento que podia fazer. Sua cabeça não doia mais, o que sentia agora era uma espécie de tontura gostosa, sua visão ia escurecendo enquanto ele observava dois mendigos brigando ferozmente por um lugar embaixo de um toldo, prostitutas se olhando ameaçadoramente enquanto disputavam um rapaz que pareceu se interessar, um office boy devorando um churrasco grego, a gordura pingando no chão imundo. Até que não viu mais nada, seu último pensamento foi de estar livre para voar.
     Na manhã seguinte o corpo ainda estava lá, o IML estava de greve novamente, já acostumados com sua presença ali as pessoas já não se importavam com o liberto Andrade, o máximo que faziam era desviar o caminho. Apenas o jornaleiro da praça por piedade lhe cobriu o corpo com jornais velhos para evitar que os pombos, que já se acumulavam ao seu redor, viessem a bicar o corpo.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Amnésia



      Não sei quem sou, não tenho um nome, não que isso signifique alguma coisa. Ou será que o nome ajuda a definir a personalidade de alguém? Não existem aqueles livros com o significados, do tipo: Meu filho vai se chamar Luciano que significa portador de luz. Nesse caso o nome seria uma espécie de prisão, de onde você gritaria por sua individualidade, pelo direito de ser você mesmo, não um simples nome, escolhido, programado e herdado, como um sapato apertado que você ganha de um tio e tem que usa-lo mesmo não gostando. Pensando assim, o fato de eu não lembrar meu nome ou qualquer coisa que aconteceu comigo antes de chegar na instituição é uma benção, porque posso escolher meu nome e assim tomar as rédeas de meu destino.
     As vezes gasto meu tempo, que é muito aqui, pensando em uma alcunha que poderia definir minha personalidade. Como isso é importante e definitivo, não posso me apressar. Por enquanto vou aceitar o que me deram logo que cheguei. Prazer, Rubão ao seu dispor. Ou poderia ficar sem nome mesmo, como um personagem do Saramago. Eu seria o rapaz que esqueceu o nome. Iria ser engraçado: O quarto onde o  rapaz que esqueceu o nome dorme é pequeno, talvez muito menor do que as dúvidas que envolvem seu ser.
     Bom, você deve estar se perguntando como um cara que não lembra nem quem é pode citar o grande escritor português ganhador do Nobel? Vou explicar, ou melhor não vou. Só sei que me lembro de livros, filmes e músicas que um dia entraram na minha vida. O nome que escolheram pra mim veio do livro que encontraram comigo quando me encontraram, Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, do Rubem Fonseca. O título,que define o sonho, também poderia definir minha vida, que não passa de fragmentos de diálogos pela manhã, seguidos por um almoço à moda do exército, lembranças incompletas pela tarde e finalmente desespero e solidão ao anoitecer.
     Rubão, um bom nome, melhor ainda no aumentativo como escolheram, tem mais força, mais grandiosidade. É talvez eu fique com esse nome mesmo.
     A única certeza que tenho é que gosto e conheço literatura, por quê? Seria eu um professor de ginásio? Um crítico chato de lançamentos numa revista especializada? Um escritor marginal que só escreve nas paredes de seu quarto? Um diretor de cinema perito em adaptar obras? Ou apenas um mendingo que tinha entre suas muitas manias a de ler as coisas que encontrava antes de vender por quilo num ferro velho para poder pagar um prato feito no centro.
     Não vou pensar mais nisso, o que interessa é o que  sou agora e o que tenho que fazer, um cara de quarenta e poucos anos internado numa instituição mental puramente por não existir ainda um lugar para as pessoas que esquecem quem são, e sair daqui.
     Durante um ano e três meses observei atentamente a rotina do lugar, a segurança é bem feita, mas encontrei algumas falhas. Todo dia às oito horas da manhã um caminhão cheio de roupas sujas sai daqui rumo à uma lavanderia. Nunca revistam as roupas, se eu conseguir distrair o motorista enquanto eles embarcam a carga, poderei me esconder no meio dela, e finalmente tentar descobrir quem sou.
     Acordo as seis horas da manhã, vou até a cama de meu único amigo aqui dentro, o Robô Comida. É assim que ele se auto denomina, pesando cento e sessenta quilos, ele acha que é uma máquina cujo único objetivo é acabar com toda comida do mundo.
    Acorda Robô! Tenho uma missão especial para você hoje. Digo o cutucando.
    Robô Comida ligado e pronto. Estoque de matéria orgânica nutritiva em baixa. Urgência de reposição. Diz ele com sua voz mecânica de sempre, se levantando.
     Explico o plano para ele e ficamos a postos após ele exterminar meia dúzia de pãezinhos. Estou escondido atrás da pilastra próxima ao caminhão com todos meus pertences numa sacola de mercado, enquanto vejo o Robô se aproximar do motorista enquanto este espera que o funcionário traga outra remessa de roupa.
     Robô fez besteira, deixou o gás da cozinha aberto e não acha fogo para acender. Robô quer exterminar torta de frango, malvada torta de frango. Grita meu amigo para o surpreso motorista.
     Você não podia fazer isso Robô, alguêm pode se machucar. Vamos lá desligar isso. Respondeu o motorista que já o conhecia e sabia de sua sagrada missão.
     Assim que eles saem de vista corro para o baú do caminhão e me escondo atrás de uma pilha de mal cheirosos uniformes de internos. Logo ouço a voz do motorista dizendo que já ia sair, o caminhão estava cheio. Um click de porta fechada e a liberdade é toda minha.
     O caminhão estaciona dentro da garagem da lavanderia após uns vinte minutos de sacolejo. A porta se abre e posso ouvir o motorista se afastar para dentro da loja. Saio sorrateiramente  para um depósito dos mais variados tipos de roupas. Escolho uma calça jeans e uma camiseta, coloco em minha sacola e saio apressadamente pela porta ainda aberta.
     Me sinto como uma criança em seu primeiro dia de aula, tudo é diferente, novo. As pessoas parecem não notar meu sujo uniforme, mas todo cuidado é pouco. Entro em um boteco, digno de um conto do Nelson Rodrigues, apesar da hora já lá se encontra bêbados e algumas prostitutas à tomar o café da manhã depois de uma noite de trabalho duro.
     No banheiro, troco minha roupa enquanto leio os interessantes dizeres tão cuidadosamentes escritos nas paredes. Nesse tipo de lugar você pode encontrar de propostas homosexuais à pedido de emprego. Do lado de “Adoro garoto novo e bem dotado” temos “Faço serviço de pintor e pedreiro”. Alguém um dia deveria fazer um estudo linguístico disso, o material é riquissimo.
     Já bem mais apresentável que antes, saio agradecendo o dono do bar que com sua camisa de peito aberto e corrente de ouro serve um pingado.
     Pergunto em uma banca de jornal onde é o endereço  da livraria cujo carimbo encontra-se no meu livro. Depois de algumas explicações fico sabendo que não estou longe. Bom, afinal não tenho nenhum centavo comigo. Me dirijo para lá com a esperança de que alguém da loja me reconheça, afinal devo ter comprado o livro lá. Não é muito, mas é a única pista de meu passado que tenho.
    
     Chego à porta de uma grande e luxuosa livraria, vitrines reluzentes mostram os últimos lançamentos enquanto dois atendentes conversam animadamente lá dentro. Respiro fundo e entro, o maximo que pode acontecer é  eles nunca terem me visto na vida.
     Bom dia! Eu gostaria de uma informação. Digo pegando o livro em minha sacola. Enquanto o mais velho dos vendedores me olha perplexo.
     Não pode ser! Seu Natanael, é o senhor mesmo? Pergunta o velho que faz  cara de alguem que acabou de encontrar um bezerro de três cabeças.
     Natanael? Você me conhece? Me diz logo. Grito dentro da loja atraindo a atenção de alguns fregueses que folheavam livros sofregamente.
     É claro, seu Natanael. O senhor vinha sempre aqui comprar livros comigo. Depois sumiu, li no jornal que ninguem sabia o que tinha acontecido.
     Jornal? Deu no jornal que eu sumi? Por quê?
     Quando um dos maiores escritores brasileiros some de repente, a imprensa noticia. Depois de tanto tempo sem noticia já se acreditava que o senhor estava morto.
     Sou um escritor então... Qual é meu sobrenome?
     O senhor não sabe? ´Respondeu enquanto pegava um livro numa estante próxima e me entregava.
     Pude ver no livro de capa branca  duas mãos se tocando angelicalmente e os dizeres: O toque divino, Natanael Nogueira.
     Sei que essa situação parece estranha, mas eu perdi minha memória. Não lembro de nada, por isso preciso saber se você tem certeza do que está dizendo.
     Certeza absoluta, o senhor até autografou uns livros aqui. Disse ele abrindo a  capa do livro onde dentro podia se ver a assinatura do autor.
     Você tem uma caneta? Preciso ter certeza.
     O velho que agora mais calmo me parece muito simpático pega a caneta do bolso da camisa e me entrega. Assino Natanael Nogueira embaixo da assinatura já existente. Para minha alegria, as duas são idênticas. Sou um escritor best seller chamado Natanael.
     Depois de algumas explicações o solícito vendedor liga para a polícia, que depois de comprovar minhas digitais me leva até a frente de uma mansão, situada num bairro chique.
     Desço do carro e uma mulher loira muito atraente  e bem vestida aguarda com cara de aflita no portão.
     Achei que você estava morto. Como é que você some assim e me deixa cheia de problemas.
     Me desculpe, mas não me lembro de nada. Quem é você? Pergunto meio sem jeito.
     A polícia me avisou que você está confuso. Sou Helena, sua mulher. Responde ela me puxando para dentro da casa. Logo aquilo ali estaria repleto de reporteres, como percebi depois.
     A casa me lembra a do Gatsby do Fitsgerald, grandes lustres iluminam um hall que parece um misto de moderno com clássico. Uma casa com cara de inicio do século, mas com toques de arte nuveau Tudo me parece suntuoso, exagerado e desnecessário.
     Depois de tomar um banho num banheiro digno de cobertura de hotel, me visto em um armário que ocupa um comodo da casa. Para quem usava uniforme de manicomio, tá bom demais. Desço de elevador para o terreo, onde encontro Helena tomando um martini jogada em um luxuoso sofá.
     Me diz como eu era, a gente tem filhos? Como a gente se apaixonou? Pergunto para ela, que me olha com cara de surpresa.
     Filhos? Você deve estar brincando, você acha que eu sofro três horas por dia na academia para estragar tudo tendo um filho? Me poupe.
     Mas um casal que se ama precisa ter filhos, a concretização do amor entre eles. E afinal temos tanto espaço aqui.
     Acho que você não se lembra mesmo quem é. Por isso vou esclarecer umas coisas. A gente não se ama, nem nunca se amou. Você tinha vergonha da sua origem humilde, as pessoas te acusavam de novo rico. Só porque você fez fortuna com seus livros de uma hora para outra. Acho isso uma besteira, dinheiro é sempre bom. Não importa se veio de sua família rica ou se você ganhou vendendo remédio adulterado pra velhinho com cancêr. Ai, você resolveu se casar com uma moça de família rica, que soubesse se portar e fosse bonita. Eu, você me tirou da casa dos meus pais para ser seu bibêlo de luxo exibido em festas chiques. Nunca aconteceu nada entre a gente, é o trato. E afinal de contas, todo mundo sabe das suas amantes. Posso ficar com fama de mulher traída, mas você me paga muito bem pra isso.
     Nossa! Não parece algo que eu faria, não posso ter sido tão horrível assim. Disse atordoado.
     Você era e vai continuar sendo assim. Daqui a pouco essa crise de bom mocinho passa e você volta a ser o mesmo nojento de sempre. Preciso ir pra academia. Disse Helena saindo da sala com o copo na mão.
     Não sabia o que fazer. Tudo bem, não tenho uma vida conjugal feliz, mas ainda resta minha carreira. As pessoas admiram o que escrevo, vou me prender a isso.
     Pensando nisso vou até minha agenda, que estranhamente sabia onde estava, e disco o número de minha editora. Após uma rápida conversa, marco uma reunião para dali a pouco.
     Pego um dos três carros de luxo da garagem e sigo para o endereço em meio ao batalhão de reporteres que cercam meu carro na saída. Um prédio alto e imponente com janelas de vidro que tentam passar idéia de segurança.
     Por todo o trajeto até a sala de minha editora, sou tratado como se fosse o messias. Entro e dou de cara com uma balzaquiana vestindo um fino taier e segurando um cigarro entre dedos amarelos e magros.
     Puxa, que bom que você voltou. Isso vai representar um aumento significativo em nossas vendas. Já pensou em escrever suas experiencias nesse tempo. Já estou vendo até um filme, com galã de novela das oito em seu papel. Cospe ela entusiasmadamente.
     Foi difícil para mim, não sei se quero lembrar tudo.
     Quanto mais sofrido mais vende, como você me disse um dia. E nós temos um contrato para mais três livros, e seu prazo para entregar o próximo se encerra daqui a um mês.
     Impossível! Como vou escrever um livro em um mês?
     Você escreveu o “A espera da luz” em quinze dias. E vendeu três milhões de cópias no mundo todo. Tem tradução até pro arábe.
     Como escrevi uma obra literária em quinze dias?
     Vamos ser sinceros, você mesmo disse uma vez que sua literatura era a porcaria que os idiotas gostam de ler. Afinal você é um gênio nessa área, a idéia de dizer que você recebe um anjo que escreve por você foi brilhante. Até na escolha do nome, Natanael Nogueira. Um nome angelical e um sobrenome de coisa da natureza, madeira, confiavel e bela.
     Quer dizer que não me chamo assim, mas que merda é essa?
     Lógico que não, seu nome mesmo é Gerolino Rodolfo Silva. Você concordou comigo que nem mesmo os idiotas dos nossos leitores leriam algo escrito por alguem com um nome desses.
     Me desculpe, mas tenho um compromisso. Preciso ir, depois a gente se fala.
     Digo e saio apressado do prédio, deixo o carro e sigo a pé sem destino. Enquanto caminho vou pensando em que me transformei, ou melhor o que fui. Lutei tanto para voltar a ser isso?
    Os nomes! Tão diferentes, cada um com seu significado. Quem serei eu?
Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael?
Gero...Rub...ou Nata? G...R...N...
   



     Não sei quem sou, não tenho um nome. A única coisa que sei é que me encontraram andando perdido pelas ruas sem memória, e me mandaram para um manicômio. Mas logo vou fugir daqui, para finalmente descobrir quem sou.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O Resignado



         “Doutora, acho que ainda não tô pronto para falar sobre que aconteceu”.
         “Acho que deveria tentar, já fazem seis meses que você está sobre tratamento aqui em nossa instituição. Acho que temos feito progressos, mas só terei certeza quando você conseguir confrontar tudo que aconteceu e aceitar que errou”.
         “Gosto muito da senhora, mas acho que me sentiria mais confortável falando com um homem. Sabe, papo de macho. Tem certas coisas que uma mulher nunca vai entender, como a coisa do orgulho”.
         “Orgulho? Você quer dizer que as mulheres não têm orgulho?”
         “Não é isso. Não distorce o que tô dizendo. O que quis dizer é que o homem tem mais obrigação de defender seu orgulho. Por exemplo, um homem nunca deve levar tapa na cara, se levar tem que botar o desgraçado no chão. Senão fica mal falado, e nessa vida a única coisa que a gente tem é nossa moral”.
         “O que aconteceu tem a ver com orgulho?”
         “Lógico,  eu não conseguia acreditar no que tava vendo. Ninguém podia agir daquele jeito, nem mesmo o Nestor”.
         “Aonde você conheceu ele?”
         “Você quer que eu conte ou não? Então pará de me interromper”.
         “Continue”.
         “Eu trabalhava em um posto do correio como atendente. Ficava atrás do guichê pesando carta, pacote e vendendo tele sena. Só quem trabalhou lá sabe  que é um puta serviço do inferno. Você fica o dia inteiro ouvindo desaforo e reclamação, parece até que só gente burra manda carta. E foi lá que conheci o Nestor, um cara quieto, sempre na dele. Era pequeno e magro, do outro lado do guichê só podia se ver sua cabeça”.
         “E você  não se dava bem com ele?”
         “Pelo contrário, ficamos até amigos. No começo não percebi o que havia de errado com ele, só achava ele um cara com paciência de santo”.
         “O que te levou a achar isso?”
         “Não sei se você vai me entender, mas sabe. Ele não reagia. As mulheres e os velhos, que são os que mais reclamam, xingavam e   desreipeitavam ele. E ele não fazia nada, nem pedir educação, ele pedia. Comigo a coisa era diferente, quando algum engraçadinho vinha levar uma com a minha cara eu já logo levantava a voz e o indivíduo se encolhia todo”.
         “Vai ver ele  se segurava para não se prejudicar no emprego”.
         “Tô dizendo que mulher não entende de orgulho. Tudo tem um limite, aguentar uma velha reclamando que perdeu o prazo para retirar um pacote é uma coisa, mas aguentar o que ele aguentava… Chega a ser falta de vergonha na cara”.
         “Mas o que aconteceu de tão sério assim lá?”
         “Simplesmente, um dia uma gordona, daquelas que tem que se lavar com esponja pendurada na ponta de um pau, se irritou por ter ficado muito tempo na fila. Mas não era culpa do Nestor, o cara dava o maior sangue lá. Atendia todo mundo rápido e com educação. Só que a gorda resolveu descontar nele toda sua fúria, começou gritando tão alto que a agência parou para assistir o espetáculo, acho que o que ela queria era isso mesmo: se mostrar. O Nestor continuou estranhamente calmo, nem torceu um pouco a cara. Pegou um formulário de reclamações e entregou educadamente para a gorda. Ela mais ofendida ainda pela impassibilidade daquele homenzinho, amassou e jogou o papel na cara dele. Na cara dele! Ele continuou com a mesma cara, e se desculpou por não te-la atendido mais rápido. A porca se ofendeu tanto, achando que ele tava sendo irônico, que deu uma cusparada bem no meio da cara dele e saiu andando.”
         “Que horror!”
         “Pois é. Sabe o que eu te disse sobre  tapa na cara? Cuspe é trinta vezes pior, se fosse comigo eu tinha enchido aquela nojenta de porrada, mesmo sendo mulher”.
         “Continue, o que Nestor fez?”
         “Ele chamou o próximo da fila, ainda com o cuspe escorrendo pela cara. Um homem não deve se sujeitar à uma coisa dessas. Entende?”
         “Você falou alguma coisa para ele depois do ocorrido?”
         “Falei. Perguntei por que ele não fez nada. Ele me respondeu que estava resignado. Como não conhecia aquela palavra fiz cara de quem entendia e a memorizei bem para procurar depois. A senhora sabe o que quer dizer resignação?”
         “É o entendimento e aceitação do que lhe é inflingido”.
         “No Aurélio tá assim:” “1Ato de resignar-se. 2 Renúncia voluntária. 3 Ausência de revolta perante a dor (física ou moral).”  
         “Nossa você até decorou! Essa atitude dele realmente te incomodava, não?”
         “Eu já disse, isto pra mim não é ausência de revolta porra nenhuma, é falta de vergonha na cara”.
“E foi só por ter presenciado aquela cena que você fez o que fez?”
         “Imagina! Aconteceu muita coisa depois disso. A catarrada da gorda foi só o começo da história toda”.
         “Sabe, tem cara feio que consegue mulher maravilhosa, não me pergunte como, mas às vezes acontece. Era o caso do Nestor, ele tinha uma mulher que pelo amor de Deus. Uma loira altona, com tudo em cima. Usava umas roupas curtas que paravam o trânsito”.
         “Isso mostra que ele podia não ser feliz no serviço, mas em casa…”
         “É ai que você se engana. A loira passava todo dia na frente do correio com alguém diferente”.
         “Como assim diferente?”
         “Passava com homem, doutora. Abraçada e tudo, até mandava beijinho pro Nestor. E o cornão ainda mandava de volta, é o fim da picada”.
         “Você tem certeza que ela o traía?”
         “Claro. Fui falar com ele. Perguntei que palhaçada era aquela, tava todo mundo comentando. Ele ficou quieto, e eu então gritei com ele. Não aguentei ver um homem numa situação daquela: Puta que pariu Nestor, cê sabe que tua mulher tá dando pro bairro todo e não faz nada!”
         “O que ele disse?”
         “Que tava resignado, e que além do mais, ela preparava a comida pra ele. Quase tive um treco de ódio quando ouvi isso, mas me controlei e deixei pra lá. Eu não ia ficar preocupado com a vida dos outros. Se ele queria ser a piada do bairro, azar o dele”.
         “Se você resolveu não se importar mais, por que está internado respondendo à um processo?”
         “(…) Passou um tempo e o Nestor começou à ir trabalhar com a roupa amassada e suja. Nem trazia mais a marmita como sempre, tava comendo pão com mortandela todo dia. Dá pra acreditar, um homem viver de pão com mortandela”.
         “Você quer dizer mortadela”.
         “A senhora vai ficar me corrigindo ou quer ouvir o resto?” 
“ Continue. O que tinha acontecido?”
         “A mulher dele largou ele. Dá pra acreditar num negócio desse? Acho que enjoou de meter chifre em quem não ligava e resolveu arrumar outro pra ser o corno titular”.
         “Ele pareceu triste, deprimido?”
         “Que nada! Se não fosse pelas roupas e pelo pão, eu nem tinha notado. Perguntei, para desencargo de consciência, se ele tava bem. Adivinha o que ele respondeu.”
         “Que estava resignado”.
         “Tá me entendendo. O cara não era normal, ninguém aguenta um negócio desse quieto. Eu já tava até achando que ele não sentia nada mesmo”.
         “Foi depois disso que você decidiu agir?”
         “Não. Ainda teve uma coisa. Eu fico até com nojo de contar”.
         “Pode dizer, sou uma profissional. Estou acostumada com essas coisas”.
         “Fala isso porque não conhece o Carne Moída. Só quem mora na zona norte tem o azar de encontrar ele às vezes”.
         “Um dia eu resolvi chamar o Nestor pra tomar uma cerveja, ver se animava ele. Ele topou. Saimos do serviço, e no caminho para o bar encontramos esse cara, o Carne Moída. Ele deveria estar aqui internado, não eu. O cara é louco de pedra, é um mendigo imundo que vive pedindo dinheiro pra quem passa”.
         “O que tem de tão horrível nisso, inúmeras pessoas o fazem”.
         “Quantas pessoas você conhece que comem pedaços de pele morta da própria perna?”
         “O que?”
         “É, esse cara tem alguma doença na perna, ela fica descascando. Vai ver é até lepra. Se não bastasse isso, ele ainda tira uns tecos e come. Ele é famoso lá na minha aréa”.
         “O que aconteceu quando vocês o encontraram”.
         “Ele pediu dinheiro, eu mandei ele arrumar um emprego, mas o Nestor jogou algumas moedas que tinha no bolso. O desgraçado do mendigo viu que era pouco e bravo pegou alguma coisa em baixo do cobertor e jogou na cara do Nestor. Foi nesse momento que eu começei a perder a razão, o filho da puta tinha jogado um bolo de pele morta molhada, provavelmente babada, no Nestor”.
         “Meu Deus! Dessa vez o Nestor reagiu, não reagiu?”
         “Não!!! Ele tirou aquela coisa da cara e pediu desculpa, disse que estava meio sem dinheiro, mas da próxima vez ele daria mais”.
         “Não acredito. Seu amigo deve ter sofrido um trauma muito intenso para se anular assim. E você o que fez?”
         “Eu enchi aquele mendigo desgraçado, filho da puta de bica. Só parei quando começou a juntar gente para ver. E sai dalí puxando o Nestor pela camisa. Perguntei se a mãe dele batia nele com corrente de bicicleta pra ele ter ficado daquele  jeito. Ele me respondeu que já estava resignado e que tinhamos que entender a situação do morador de rua”.
         “Eu até entendo sua indignação, mas agredir uma pessoa…”
         “Eu não aguentava mais, larguei o resignado na rua e fui pra casa. Eu suava muito, acho que tava com febre. Tomei um Lexotan misturado com cachaça e fui deitar. Dormi e tive um sonho terrível”.
         “Você sabia que tomar calmante com bebida alcoolíca faz mal? Claro que sabia. Então como foi o sonho?”
         “Eu estava enterrado em um monte de carta até o pescoço. Não dava para mexer os braços nem pernas. E na minha frente tinha uma fila de gente que vinha me xingar e me tacar coisas. E quando comecei a xingar, minha boca sumiu. Eu não conseguia fazer nada e um monte de gente, incluindo a gorda escrota e o Carne Moída ria da minha cara”.
         “Você acabou absorvendo toda a dor que o Nestor deveria estar sentindo, isso é normal”.
         “Doutora, acredite em mim: Nessa história não tem nada de normal”.
         “O que você fez pela manhã?”
“Acordei com uma dor de cabeça do inferno, parecia que tinha alguém martelando dentro dela. Me vesti, peguei um rolo de corda, uma marreta e fui pra casa do Nestor. Eu iria provar para mim e  para o mundo que o Nestor tava fingindo”.
         “Para você é realmente impossível aceitar que alguém tenha uma posição como a  do Nestor”.
         “É fácil ficar falando. Não foi a senhora que viu tudo acontecer, queria ver se fosse a Doutora. Mas não importa, o fato é que fui até a casa dele. Toquei a campainha e logo em seguida ele abriu a porta com aquela cara de nada dele. Lhe dei um soco no meio do nariz, foi o suficiente para jogar ele no chão com o rosto sangrando. Perguntei se ele estava com raiva de mim por aquilo. Ele respondeu que não, que estava resignado. Então o amarrei em uma cadeira e comecei meu serviço”.
         “Eu já sei o que você fez lá, mas é importante para a sua terapia que você reviva esse momento. Continue”.
         “Comecei raspando as duas sombrancelhas dele. E ele, resignado. Apertei o nariz quebrado. E ele, resignado. Taquei fogo nas fotos da mãe dele. E ele, resignado. Mijei na cara dele. E ele, resignado. Matei um periquito que tinha lá. E ele, resignado. Entrei em colapso, comecei a destruir tudo com a marreta. E a cada pancada eu perguntava: Nervoso? E ele respondia: Resignado. Aquilo foi me atormentando de tal jeito que perdi o controle. A polícia me disse depois que me prenderam porque eu acabei derrubando uma parede e entrando no vizinho, que assustado chamou eles. O Nestor ficou meia hora no pronto socorro e depois se mudou para um hotel. Nunca mais ouvi falar dele, aqui nesse depósito de louco é meio difícil  chegar notícias”.
         “Não sei o que dizer. Obviamente você não conseguiu lidar com o papel que assumiu, de ser as emoções do Nestor, e acabou tendo uma crise nervosa. O seu amigo não prestou queixas, e eu acho que em breve você vai poder ser reintegrado à sociedade. Como se sente com isso?”
         “Acho que estou começando a ficar resignado”.