quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Animal





     A pesonagem de Kafka, Gregor Samsa, levava uma vida infeliz e sem sentido até acordar transformado em um inseto. Já a prostituta protagonista de Truismes, da francesa Marie Darrieussecq, era um objeto sexual sem importância, até que sem explicação tornou-se uma porca.
     Era o que pensava Andrade enquanto caminhava vagarosamente pela avenida Rio Branco em direção ao largo do Paissandu. Ia lentamente pensando em como esse pensamento acabou lhe levando à situação mais enstranha de sua vida, enquanto passava pelos inúmeros cinemas pôrnos-dois-filmes-por-um que infestavam a grande avenida, com seu canteiro central e centenas de carros naquele começo de tarde.
     Essa história de transformação de homem em bicho não era exclusividade dos europeus, Moacyr Scliar escreveu sobre um menino que nasceu centauro e se submeteu à uma  terrível operação que lhe arrancou metade do corpo, assim o transformando num homem “normal”, infeliz e preocupado. A semelhança entre os casos literários não é a toa, ser animal era bem melhor do que ser um ser humano. As personagens  mostram uma sociedade mesquinha e insensível, completa de seres hipócritas e individualistas, que se auto denominam humanos. Elas estavam muito melhor como animais, se passaram por dificuldade, foi pela falta de aceitação das pessoas “normais” em respeitar algo diferente. Como bichos não precisavam se preocupar com contas, divórcio, aposentadoria e moda. Só obedeciam à seus instintos mais básicos.
     Quando voltou a sí, notou que já havia chego ao seu destino. Estava agora na praça, onde  vendedores ambulantes anunciavam seus produtos, dividindo espaço com as prostitutas que chegam cedo naquele lugar. No centro da praça podia-se ver a pequena capela, que pintada de amarelo já precisava de reparos. Escolheu  um banco que parecia mais limpo e sentou-se, passando a fazer o que ansiosamente planejara. Observar os pombos.
     Olhando os imensos e gordos pombos da praça, que zanzavam de cá pra lá a procura de comida, lembrou-se de como tudo começou, como a idéia de se tornar um animal lhe surgiu pela primeira vez.
      Para ele, que foi tão maltratado e humilhado por toda sua vida, os livros que lera lhe mostravam uma saída. Desde pequeno sempre havia sido feio. Baixo e com orelhas de abano, sempre foi um alvo em potencial para as brincadeiras na escola. Roubavam seu lanche, lhe puxavam a cueca e lhe batiam se não fizesse os deveres de casa para eles. Seus pais sempre omissos só pensanvam onde gastar melhor o dinheiro que ganhavam. Seu pai como contador de uma multi-nacional, e sua mãe como respeitada advogada. Já na adolescencia, seus problemas haviam aumentado. Seu rosto coberto de espinhas lhe rendeu vários apelidos humilhantes que afastavam da cabeça de qualquer menina, por mais louca, feia ou esquisita que fosse, a idéia de ficar com ele. Sempre sem amigos, foi envelhecendo em meio a significativa quantidade de dinheiro que seus pais lhe deixaram, após morrerem em um acidente de carro, sem deixar a menor saudade nele.
Depois dos trinta, conseguiu se casar com uma linda mulher, que obviamente só estava interessada em seu dinheiro. Após seis meses de um casamento de faz de conta, a única vez que haviam dormido juntos fora na lua de mel, Andrade chegou mais cedo em casa e pegou a esposa, era assim que ele gostava de chama-la, com o limpador de piscina na cama. Depois de um divórcio trabalhoso e cansativo,  sua “esposa” lhe arrancou metade de seu dinheiro, que seria bem gasto ao lado do limpador de piscina em alguma ilha do Caribe. Se tornou cada vez mais recluso e anti-social, até que certo dia lhe ocorreu a idéia de se tornar um animal. Sem as preocupações fúteis dos homens ele seria feliz, não havia descriminação entre os bichos, ele poderia ser um indivíduo normal. Deveria existir um jeito, e se existisse ele conseguiria, nem que tivesse que usar todo seu dinheiro para isso.
     Contratou uma firma carissíma de pesquisa, a incubindo de descobrir um meio de um homem se tornar um animal. Pediu sigilo total, pois as pessoas não aceitavam muito bem sua idéia, Lhe chamavam de louco, mas é maluquice querer ter uma vida melhor? Já a firma não fez perguntas, estavam acostumados com ricaços malucos e seus pedidos loucos.
     Após três meses de pesquisa, que para Andrade pareceram séculos, chegaram ao resultado. Existia na Europa alguns cientistas que faziam experiências de clonagem misturando genes humanos com o de animais. Havia até o caso de uma menininha que brilhava no escuro por causa dos genes de uma espécie de água viva que tem essa propriedade. Mas ele não queria brilhar no escuro, ele queria ser um animal completo, sem o menor traço de lembrança que havia sido um homem. Não queria manter a consciência humana como as personagens literárias que o inspiraram. Descartada a hipótese de clonagem, para isso ele teria que nascer de novo, o que não estava em seus planos, só sobraram as lendas. Por todo o mundo havia lendas e relatos de casos de metamorfose humana em animal. Os pesquisadores começaram com o Sasquatch, passando pelas sereias, harpias, mulas sem cabeça até que encontraram o que procuravam.
     Investigando o mito do lobisomem chegaram até as tribos indígenas norte americanas, que acreditavam que certos shamans tinham o poder de se transformar em animal, eles lhe davam o nome de Manitu. Sabendo disso, Andrade se entusiasmou e partiu em busca dos índios.
     Durante um ano e meio ele passou vivendo entre os pouquíssimos índios que ainda restavam. Cada vez mais obcecado, distribuia montes de dinheiro a quem lhe falasse sobre o assunto. Muitos montes de dinheiro mais tarde, chegou até um velho shaman que vivia em Nova Yorque.
     Perguntando e distribuindo mais dinheiro descobriu que ele morava em  um prédio situado em um bairro barra pesada. Se ele não tivesse dispensado todos seus seguranças, com certeza eles diriam que seria loucura ir até lá. Com certeza tinha tomado a atitude correta ao se livrar deles, estava cheio das pessoas dizerem que ele era louco. Assim pensando chegou até o lugar, um prédio velho onde mal se podia  adivinhar a cor que um dia pousara ali, crianças brincavam na entrada e nos corredores enquanto homens e mulheres ficavam à janela do pombal observando o vazio. Cego por seu desejo o pequeno homem sobe as escadas até o apartamento certo. Uma imensa cabeça de alce empalhada pendurada em cima da porta o olha com ar abobalhado. Após bater, a porta é aberta por um velho de idade indecifrável, usando surradas calças Jeans, uma jaqueta do Yanques e um longo cabelo branco preso em uma trança.
      O velho lhe conta que descende de um grande shaman Navajo, e poderia ajudá-lo. Seu antepassado lhe ensinara o segredo da transformação, mas esse ritual requeria muita concentração da parte dele, o que era impossível pois estava preocupado com seu aluguel atrasado, e também não gostava de morar ali. Os espíritos lhe diziam que tinha que voltar para o mato, para a natureza. No mesmo instante em que ouviu isso, o incontrolável homenzinho lhe prometeu todo seu dinheiro. Como animal não precisaria dos já poucos milhões que dispunha, com esse dinheiro o velho poderia ajudar outras pessoas a se libertarem.
     Dois dias depois de Andrade ter transferido quase todo seu dinheiro, deixou o suficiente para uma passagem para o Brasil, na conta do índio, este lhe entregou um medalhão grosseiramente feito em argila, cujo desenho lembrava um pássaro, e lhe deu as seguintes instruções. Ele deveria olhar fixamente para o animal que gostaria de se tornar e quebrar com as duas mãos o amuleto, instantaneamente se transformaria nele.
      Saindo penosamente de suas lembranças retornou ao imundo centro de São Paulo. Continuava a olhar os pombos, já havia escolhido o seu. Um grande pombo cinza que com o peito estufado rondava uma fêmea. Estava certo em sua escolha, seria um deles. Primeiramente pensou em ser uma águia, imponente e linda, mas lembrou-se que elas estavam em extinção. Depois de todo esse trabalho não seria justo se transformar em um pássaro para levar um tiro e acabar na sala de algum colecionador idiota. Foi aí que pensou nas pombas, eram livres como os outros pássaros, não tinham predadores naturais na cidade e com certeza não eram alvo do ódio ou da ganância humana, a maioria das pessoas gostavam de pombos. E ele ainda teria o benefício de estar sempre perto dos humanos para lembrar-se de como era livre e feliz, enquanto assistiria  à algum executivo apressado e careca do alto de uma árvore.
     Com o medalhão na mão foi se preparando para o grande momento. Mas no instante em que partiria o objeto, o pombo escolhido vôou para o outro lado da rua que cercava a praça. Fixando novamente seu olhar nele, partiu sem dificuldade o sagrado artefato.
     Toda sua vida lhe passa pela cabeça como uma descarga elétrica, enquanto sente um formigamento em suas pernas e braços. Com certeza já estaria mudando. Seus olhos se enchem de lágrimas, finalmente ele seria feliz, livre. Ninguém mais abusaria ou o humilharia de novo, já podia sentir seus olhos mudando, um novo mundo se abria para ele. Olhando o céu cinzento e pesado de São Paulo, que para ele parecia de um azul celestial, se levantou demoradamente do banco e passou a caminhar em direção ao outro lado da rua, ao pombo que em breve seria seu companheiro de liberdade.
     No momento  em que chega ao meio da rua, um carro do ano o acerta na cintura a toda velocidade. Seu motorista, um gerente de banco, estava atrasado para o fechamento da agência, teve que ir para casa naquela tarde para cuidar da filha que estava doente. Acelerou um pouco mais do que devia e acabou atropelando um sujeito estranho que parecia atravessar a rua como se estivesse sonâmbulo.
     Com a forte pancada do capô em sua cintura, o corpo de Andrade foi jogado para o alto, por cima do carro. No momento em que seu corpo estava suspenso no ar, ele acreditou estar voando, sentia o vento passar por seu rosto lhe libertando a alma, finalmente sua transformação terminara.
     Após aquele libertador vôo atingiu o asfalto com a cabeça, lhe causando uma imensa dor, que atribuiu ao final da transformação. Caído em meio á uma poça de sangue que aumentava assim como o número de curiosos ao seu redor, passou a olhar os arredores limitado ao pouco movimento que podia fazer. Sua cabeça não doia mais, o que sentia agora era uma espécie de tontura gostosa, sua visão ia escurecendo enquanto ele observava dois mendigos brigando ferozmente por um lugar embaixo de um toldo, prostitutas se olhando ameaçadoramente enquanto disputavam um rapaz que pareceu se interessar, um office boy devorando um churrasco grego, a gordura pingando no chão imundo. Até que não viu mais nada, seu último pensamento foi de estar livre para voar.
     Na manhã seguinte o corpo ainda estava lá, o IML estava de greve novamente, já acostumados com sua presença ali as pessoas já não se importavam com o liberto Andrade, o máximo que faziam era desviar o caminho. Apenas o jornaleiro da praça por piedade lhe cobriu o corpo com jornais velhos para evitar que os pombos, que já se acumulavam ao seu redor, viessem a bicar o corpo.

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