sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O Conto do Conto



Capítulo I


A boa norma diria, se caso fosse ouvida, que é imprescindível não destruir a expectativa e, conseqüentemente, a simpatia do leitor, adiantando-lhe certos elementos da narrativa. Como o autor não quer surpreendê-lo de forma alguma, caro leitor, não dirá então que poderia criar um conto onde a mocinha de olhar lânguido se apaixona desesperadamente por um cavaleiro de incontáveis virtudes, que certamente enfrentaria mil obstáculos por ela, para finalmente, sob a luz cândida do luar, selarem seu amor com um beijo arrebatador, arrancando lágrimas às leitoras românticas.
            Este recriador de mundos poderia também lhe confidenciar, leitor melancólico e insone, a história de um rapaz desafortunado que, desiludido com a vida pela nefasta ação de um amor não correspondido, resolve dar fim à sua amarga existência.
            Para você, caro amigo, que não gostaria de tais sentimentalidades banais e ultrapassadas, o autor também não lhe adiantará que o conto a ser narrado não apresentará mocinhos galantes nem donzelas apaixonadas. As personagens serão como você e eu, massas disformes e desprovidas de qualidade, a não ser a de continuar sobrevivendo. Não querido leitor, isto não será feito.


Capítulo II

            Ninguém poderia adivinhar, nem mesmo você, leitor, o que se passava pela mente daquele rapaz, ao vê-lo caminhar pela rua: cabeça baixa, olhar soturno e as mãos no bolso a mover-se como se procurassem uma resposta. Muitos diriam que ele se preocupava com seu amor perdido, outros, porém, apostariam que o motivo de seu pesar era a falta de dinheiro, tão comum a todos nessa época. Mas o que não poderiam adivinhar é que por trás daquele rapaz formoso, de vinte e poucos anos e trajado elegantemente, até mesmo um pouco formal demais para a idade, estava a alma de um escritor.
            Seu nome era João Mendonça, alcunha esta escolhida por seu padrinho, de quem também herdara o gosto pelas letras. Desde muito pequeno agradava com seus escritos: as professoras liam seus textos em voz alta, para seu deleite. Já adolescente ganhara dois concursos para jovens escritores, sendo o prêmio de um deles uma bolsa de estudos em uma conceituada academia de Letras. Até aqui, leitor, você deve estar supondo que João será o herói típico: bonito, inteligente e com um futuro promissor. O que lhe incomoda, impaciente amigo, é não saber ainda o que preocupa nossa personagem. Digo nossa, porque deixou de ser do autor e passou a ser sua também, no momento em que você pousou a vista sobre essas páginas.
            Cursando o último ano do curso, o jovem escritor era tido como um dos melhores alunos e um promissor contista. Entretanto um seu professor propusera à turma a elaboração de um conto machadiano. Mas este não deveria apenas citar ou remeter a um conto de Machado de Assis; tal conto teria de ser fidelíssimo ao estilo do Bruxo do Cosme Velho de forma que se encontrado anônimo, a obra poderia ser atribuída ao escritor realista.
            Era nisso que João pensava naquele dia e nos últimos seis meses. Se alguém daquele curso era capaz de tal feito, esse alguém era ele. Mas, para seu desespero, não conseguira pensar em nada; a idéia para o conto simplesmente não ocorria. Havia estudado a fundo o estilo machadiano, sua ironia, o diálogo com leitor e seus ardis psicológicos, mas não conseguia. Havia rasgado centenas de rascunhos e uma vez, em um ataque de fúria ante sua infecundidade literária, chegou a destruir um exemplar antigo de “Contos Fluminenses”. Como poderia ele reproduzir a sutileza de “Uns Braços” ou a força de “O Enfermeiro”?
O tempo foi passando e sua agonia crescia. Agora a apenas cinco dias do prazo final, João apresentava grandes olheiras, que eram fruto de quase um mês de noites intranqüilas. Não conseguia mais ter tranqüilidade, só o que lhe interessava era aquele maldito conto que não vinha.
           

Capítulo III


Há muito, seus colegas de turma haviam percebido seu calvário, e uma garota em especial estava bastante preocupada. Graça era uma moça muito reservada que quase não tinha amigos; Não era bonita, fato este realçado pela sua escolha vestual. Usava sempre roupas de tons azuis e muito maiores que seu corpo, escondendo assim seus já poucos encantos. Nunca fora uma aluna brilhante, mas, sempre muito esforçada, conseguia boas notas. A moça orgulhava-se disso. Pois queria impressionar João, já que, desde a vez primeira que o vira, interessara-se por ele. Sempre confiante e poderoso, o jovem contista sempre sabia o que fazer.  Mas algo havia acontecido, andava triste e desanimado como se alguém tivesse lhe arrancando algo.
Você, sagaz leitor, já deve ter percebido que Graça é praticamente o oposto de João, mas não se equivoque achando que essa é uma daquelas histórias onde os opostos se atraem, e tudo termina bem.
            Respirando fundo, a ansiosa moça tomou coragem e sentou na cadeira ao lado de onde João estava e lhe perguntou:
--Anda tudo bem com você? Tenho observado-lhe; anda distraído e diferente.
--Certamente que sim; só estou preocupado com o conto do Machado, ainda não o terminei.
--Mas o prazo fatal é sexta feira, até já terminei o meu.
--Você já fez o seu? Mas como? Sobre o que escreveu?
-- Se você quiser lê-lo e me ajudar em alguma coisa, eu agradeço. Afinal, ninguém aqui escreve melhor que você. Sou sua fã.
            João, com um aceno de cabeça, pegou as folhas das mãos da moça. Sem deixar de reparar que as unhas dela estavam feias e por fazer. Despediu-se e a caminho de sua casa leu o conto e, para sua surpresa, era excelente. Carregado de estilo machadiano, a obra era sobre um humilde sapateiro que tinha o sonho de conquistar a mulher mais rica da cidade valendo-se de um sapato de verniz, que ele nunca conseguira fazer. A crítica social era bem pautada por uma ironia sutil e muito eficaz; o sapato de verniz remetia àquele cristalino de Cinderela, representando, porém, os desejos do sapateiro e não os da mulher para quem deveriam ter sido feitos. Uma espécie de conto de fadas às avessas e sem final feliz. Como ele não havia pensado nisso, tão simples e tão perfeito? Tinha certeza, agora com aquela idéia que outras apareceriam em sua cabeça. Era mera questão de tempo. Mas não foi bem assim, seu sono continuou intranqüilo e sua mente vazia.
           


Capítulo IV

Faltando apenas um dia para o prazo final, sem ter nenhuma linha escrita, João se aproximou de Graça para devolver-lhe o conto com algumas correções gramaticais.
--Seu conto está muito bom, somente corrigi alguns detalhes sem importância. Nada que lhe comprometesse.
--Muito obrigada, estou ansiosa para ler o seu. Deve estar divino.
--Infelizmente não consegui terminar, não entregarei nada. E para meu infortúnio, ainda tenho um nome a zelar.
--É verdade, todo mundo vai ficar decepcionado. Todos achavam que o seu seria o melhor conto. É uma pena, se houvesse algum meio de o ajudar...
--Mas há! Chequei sua nota, está muito boa. Não é nem preciso entregar o conto para que você passe nessa disciplina, sendo assim, você poderia me cedê-lo, impedindo assim que eu manche minha reputação.
--Mas... Meu conto está ruim para o teu nível. Tal coisa não é digna de levar teu nome.
--Imagine! Você é uma das pessoas mais inteligentes da turma... Já há tempos quero te conhecer melhor. Não poderia haver ocasião mais propícia para isso.
            E frente ao argênteo sorriso que João lhe dera, Graça aceitou o engodo. Afinal teria tudo o que sempre quisera: uma chance com seu jovem escritor. Acertado todos os pormenores, o conto foi entregue. Encontraram-se no fim de semana, e, para a surpresa de João, Graça mostrou-se muito interessante e carinhosa. Deram-se muito bem, conversaram por horas em meio á beijos e afagos.
            Na véspera da avaliação do conto, João dormiu como não dormia há tempos. Estava feliz, havia conseguido o conto e, além disso, encontrado alguém com quem poderia ter um longo relacionamento. A caminho da Academia parou para comprar flores para Graça. Lá chegando encontrou somente a bela moça com olhar sério e seu professor na sala.
--Pode entrar senhor João! Era com o senhor mesmo que queria falar. Seu conto está maravilhoso, mas tenho uma dúvida. Algumas pessoas disseram-me ter ouvido que quem o compusera foi a Graça. Isto é verdade?
--O que se passa aqui, professor?
--Disse à sua colega de turma, que se realmente fosse ela a autora do conto, a Academia conceder-lhe-ia bolsa de estudos integral, assim como a sua. Ela então me indicou que não responderia nada, que o assunto seria com o senhor.
            João olhou para Graça, os olhos dela implorando pela verdade. Seria uma grande prova de amor da parte dele. Olhou para o professor e depois para seus pés. O que fazer? Não poderia assumir o erro. E sua moral, seu futuro? Mas também não poderia fazer isso com a pessoa que tinha o ajudado, e, que lhe contara como tinha que trabalhar em uma sapataria para poder pagar a mensalidade. Foi então que se decidiu: impondo firmeza à voz, disse ao professor que era óbvio que o conto era dele, Graça não seria capaz de tamanha proeza poética. Tendo dito isso foi embora sem olhar para trás, mas mesmo assim pôde ouvir o choro sufocado da moça.
Já no portão, enquanto pensava que nunca conseguiria, por mais que tentasse, criar algo como um conto machadiano, jogou o ramalhete de flores em uma lata de lixo próxima. E saiu para uma noite fria e vazia onde não havia banda alguma para  seguir.

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