segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O Resignado



         “Doutora, acho que ainda não tô pronto para falar sobre que aconteceu”.
         “Acho que deveria tentar, já fazem seis meses que você está sobre tratamento aqui em nossa instituição. Acho que temos feito progressos, mas só terei certeza quando você conseguir confrontar tudo que aconteceu e aceitar que errou”.
         “Gosto muito da senhora, mas acho que me sentiria mais confortável falando com um homem. Sabe, papo de macho. Tem certas coisas que uma mulher nunca vai entender, como a coisa do orgulho”.
         “Orgulho? Você quer dizer que as mulheres não têm orgulho?”
         “Não é isso. Não distorce o que tô dizendo. O que quis dizer é que o homem tem mais obrigação de defender seu orgulho. Por exemplo, um homem nunca deve levar tapa na cara, se levar tem que botar o desgraçado no chão. Senão fica mal falado, e nessa vida a única coisa que a gente tem é nossa moral”.
         “O que aconteceu tem a ver com orgulho?”
         “Lógico,  eu não conseguia acreditar no que tava vendo. Ninguém podia agir daquele jeito, nem mesmo o Nestor”.
         “Aonde você conheceu ele?”
         “Você quer que eu conte ou não? Então pará de me interromper”.
         “Continue”.
         “Eu trabalhava em um posto do correio como atendente. Ficava atrás do guichê pesando carta, pacote e vendendo tele sena. Só quem trabalhou lá sabe  que é um puta serviço do inferno. Você fica o dia inteiro ouvindo desaforo e reclamação, parece até que só gente burra manda carta. E foi lá que conheci o Nestor, um cara quieto, sempre na dele. Era pequeno e magro, do outro lado do guichê só podia se ver sua cabeça”.
         “E você  não se dava bem com ele?”
         “Pelo contrário, ficamos até amigos. No começo não percebi o que havia de errado com ele, só achava ele um cara com paciência de santo”.
         “O que te levou a achar isso?”
         “Não sei se você vai me entender, mas sabe. Ele não reagia. As mulheres e os velhos, que são os que mais reclamam, xingavam e   desreipeitavam ele. E ele não fazia nada, nem pedir educação, ele pedia. Comigo a coisa era diferente, quando algum engraçadinho vinha levar uma com a minha cara eu já logo levantava a voz e o indivíduo se encolhia todo”.
         “Vai ver ele  se segurava para não se prejudicar no emprego”.
         “Tô dizendo que mulher não entende de orgulho. Tudo tem um limite, aguentar uma velha reclamando que perdeu o prazo para retirar um pacote é uma coisa, mas aguentar o que ele aguentava… Chega a ser falta de vergonha na cara”.
         “Mas o que aconteceu de tão sério assim lá?”
         “Simplesmente, um dia uma gordona, daquelas que tem que se lavar com esponja pendurada na ponta de um pau, se irritou por ter ficado muito tempo na fila. Mas não era culpa do Nestor, o cara dava o maior sangue lá. Atendia todo mundo rápido e com educação. Só que a gorda resolveu descontar nele toda sua fúria, começou gritando tão alto que a agência parou para assistir o espetáculo, acho que o que ela queria era isso mesmo: se mostrar. O Nestor continuou estranhamente calmo, nem torceu um pouco a cara. Pegou um formulário de reclamações e entregou educadamente para a gorda. Ela mais ofendida ainda pela impassibilidade daquele homenzinho, amassou e jogou o papel na cara dele. Na cara dele! Ele continuou com a mesma cara, e se desculpou por não te-la atendido mais rápido. A porca se ofendeu tanto, achando que ele tava sendo irônico, que deu uma cusparada bem no meio da cara dele e saiu andando.”
         “Que horror!”
         “Pois é. Sabe o que eu te disse sobre  tapa na cara? Cuspe é trinta vezes pior, se fosse comigo eu tinha enchido aquela nojenta de porrada, mesmo sendo mulher”.
         “Continue, o que Nestor fez?”
         “Ele chamou o próximo da fila, ainda com o cuspe escorrendo pela cara. Um homem não deve se sujeitar à uma coisa dessas. Entende?”
         “Você falou alguma coisa para ele depois do ocorrido?”
         “Falei. Perguntei por que ele não fez nada. Ele me respondeu que estava resignado. Como não conhecia aquela palavra fiz cara de quem entendia e a memorizei bem para procurar depois. A senhora sabe o que quer dizer resignação?”
         “É o entendimento e aceitação do que lhe é inflingido”.
         “No Aurélio tá assim:” “1Ato de resignar-se. 2 Renúncia voluntária. 3 Ausência de revolta perante a dor (física ou moral).”  
         “Nossa você até decorou! Essa atitude dele realmente te incomodava, não?”
         “Eu já disse, isto pra mim não é ausência de revolta porra nenhuma, é falta de vergonha na cara”.
“E foi só por ter presenciado aquela cena que você fez o que fez?”
         “Imagina! Aconteceu muita coisa depois disso. A catarrada da gorda foi só o começo da história toda”.
         “Sabe, tem cara feio que consegue mulher maravilhosa, não me pergunte como, mas às vezes acontece. Era o caso do Nestor, ele tinha uma mulher que pelo amor de Deus. Uma loira altona, com tudo em cima. Usava umas roupas curtas que paravam o trânsito”.
         “Isso mostra que ele podia não ser feliz no serviço, mas em casa…”
         “É ai que você se engana. A loira passava todo dia na frente do correio com alguém diferente”.
         “Como assim diferente?”
         “Passava com homem, doutora. Abraçada e tudo, até mandava beijinho pro Nestor. E o cornão ainda mandava de volta, é o fim da picada”.
         “Você tem certeza que ela o traía?”
         “Claro. Fui falar com ele. Perguntei que palhaçada era aquela, tava todo mundo comentando. Ele ficou quieto, e eu então gritei com ele. Não aguentei ver um homem numa situação daquela: Puta que pariu Nestor, cê sabe que tua mulher tá dando pro bairro todo e não faz nada!”
         “O que ele disse?”
         “Que tava resignado, e que além do mais, ela preparava a comida pra ele. Quase tive um treco de ódio quando ouvi isso, mas me controlei e deixei pra lá. Eu não ia ficar preocupado com a vida dos outros. Se ele queria ser a piada do bairro, azar o dele”.
         “Se você resolveu não se importar mais, por que está internado respondendo à um processo?”
         “(…) Passou um tempo e o Nestor começou à ir trabalhar com a roupa amassada e suja. Nem trazia mais a marmita como sempre, tava comendo pão com mortandela todo dia. Dá pra acreditar, um homem viver de pão com mortandela”.
         “Você quer dizer mortadela”.
         “A senhora vai ficar me corrigindo ou quer ouvir o resto?” 
“ Continue. O que tinha acontecido?”
         “A mulher dele largou ele. Dá pra acreditar num negócio desse? Acho que enjoou de meter chifre em quem não ligava e resolveu arrumar outro pra ser o corno titular”.
         “Ele pareceu triste, deprimido?”
         “Que nada! Se não fosse pelas roupas e pelo pão, eu nem tinha notado. Perguntei, para desencargo de consciência, se ele tava bem. Adivinha o que ele respondeu.”
         “Que estava resignado”.
         “Tá me entendendo. O cara não era normal, ninguém aguenta um negócio desse quieto. Eu já tava até achando que ele não sentia nada mesmo”.
         “Foi depois disso que você decidiu agir?”
         “Não. Ainda teve uma coisa. Eu fico até com nojo de contar”.
         “Pode dizer, sou uma profissional. Estou acostumada com essas coisas”.
         “Fala isso porque não conhece o Carne Moída. Só quem mora na zona norte tem o azar de encontrar ele às vezes”.
         “Um dia eu resolvi chamar o Nestor pra tomar uma cerveja, ver se animava ele. Ele topou. Saimos do serviço, e no caminho para o bar encontramos esse cara, o Carne Moída. Ele deveria estar aqui internado, não eu. O cara é louco de pedra, é um mendigo imundo que vive pedindo dinheiro pra quem passa”.
         “O que tem de tão horrível nisso, inúmeras pessoas o fazem”.
         “Quantas pessoas você conhece que comem pedaços de pele morta da própria perna?”
         “O que?”
         “É, esse cara tem alguma doença na perna, ela fica descascando. Vai ver é até lepra. Se não bastasse isso, ele ainda tira uns tecos e come. Ele é famoso lá na minha aréa”.
         “O que aconteceu quando vocês o encontraram”.
         “Ele pediu dinheiro, eu mandei ele arrumar um emprego, mas o Nestor jogou algumas moedas que tinha no bolso. O desgraçado do mendigo viu que era pouco e bravo pegou alguma coisa em baixo do cobertor e jogou na cara do Nestor. Foi nesse momento que eu começei a perder a razão, o filho da puta tinha jogado um bolo de pele morta molhada, provavelmente babada, no Nestor”.
         “Meu Deus! Dessa vez o Nestor reagiu, não reagiu?”
         “Não!!! Ele tirou aquela coisa da cara e pediu desculpa, disse que estava meio sem dinheiro, mas da próxima vez ele daria mais”.
         “Não acredito. Seu amigo deve ter sofrido um trauma muito intenso para se anular assim. E você o que fez?”
         “Eu enchi aquele mendigo desgraçado, filho da puta de bica. Só parei quando começou a juntar gente para ver. E sai dalí puxando o Nestor pela camisa. Perguntei se a mãe dele batia nele com corrente de bicicleta pra ele ter ficado daquele  jeito. Ele me respondeu que já estava resignado e que tinhamos que entender a situação do morador de rua”.
         “Eu até entendo sua indignação, mas agredir uma pessoa…”
         “Eu não aguentava mais, larguei o resignado na rua e fui pra casa. Eu suava muito, acho que tava com febre. Tomei um Lexotan misturado com cachaça e fui deitar. Dormi e tive um sonho terrível”.
         “Você sabia que tomar calmante com bebida alcoolíca faz mal? Claro que sabia. Então como foi o sonho?”
         “Eu estava enterrado em um monte de carta até o pescoço. Não dava para mexer os braços nem pernas. E na minha frente tinha uma fila de gente que vinha me xingar e me tacar coisas. E quando comecei a xingar, minha boca sumiu. Eu não conseguia fazer nada e um monte de gente, incluindo a gorda escrota e o Carne Moída ria da minha cara”.
         “Você acabou absorvendo toda a dor que o Nestor deveria estar sentindo, isso é normal”.
         “Doutora, acredite em mim: Nessa história não tem nada de normal”.
         “O que você fez pela manhã?”
“Acordei com uma dor de cabeça do inferno, parecia que tinha alguém martelando dentro dela. Me vesti, peguei um rolo de corda, uma marreta e fui pra casa do Nestor. Eu iria provar para mim e  para o mundo que o Nestor tava fingindo”.
         “Para você é realmente impossível aceitar que alguém tenha uma posição como a  do Nestor”.
         “É fácil ficar falando. Não foi a senhora que viu tudo acontecer, queria ver se fosse a Doutora. Mas não importa, o fato é que fui até a casa dele. Toquei a campainha e logo em seguida ele abriu a porta com aquela cara de nada dele. Lhe dei um soco no meio do nariz, foi o suficiente para jogar ele no chão com o rosto sangrando. Perguntei se ele estava com raiva de mim por aquilo. Ele respondeu que não, que estava resignado. Então o amarrei em uma cadeira e comecei meu serviço”.
         “Eu já sei o que você fez lá, mas é importante para a sua terapia que você reviva esse momento. Continue”.
         “Comecei raspando as duas sombrancelhas dele. E ele, resignado. Apertei o nariz quebrado. E ele, resignado. Taquei fogo nas fotos da mãe dele. E ele, resignado. Mijei na cara dele. E ele, resignado. Matei um periquito que tinha lá. E ele, resignado. Entrei em colapso, comecei a destruir tudo com a marreta. E a cada pancada eu perguntava: Nervoso? E ele respondia: Resignado. Aquilo foi me atormentando de tal jeito que perdi o controle. A polícia me disse depois que me prenderam porque eu acabei derrubando uma parede e entrando no vizinho, que assustado chamou eles. O Nestor ficou meia hora no pronto socorro e depois se mudou para um hotel. Nunca mais ouvi falar dele, aqui nesse depósito de louco é meio difícil  chegar notícias”.
         “Não sei o que dizer. Obviamente você não conseguiu lidar com o papel que assumiu, de ser as emoções do Nestor, e acabou tendo uma crise nervosa. O seu amigo não prestou queixas, e eu acho que em breve você vai poder ser reintegrado à sociedade. Como se sente com isso?”
         “Acho que estou começando a ficar resignado”.

Nenhum comentário: