terça-feira, 3 de agosto de 2010

Amnésia



      Não sei quem sou, não tenho um nome, não que isso signifique alguma coisa. Ou será que o nome ajuda a definir a personalidade de alguém? Não existem aqueles livros com o significados, do tipo: Meu filho vai se chamar Luciano que significa portador de luz. Nesse caso o nome seria uma espécie de prisão, de onde você gritaria por sua individualidade, pelo direito de ser você mesmo, não um simples nome, escolhido, programado e herdado, como um sapato apertado que você ganha de um tio e tem que usa-lo mesmo não gostando. Pensando assim, o fato de eu não lembrar meu nome ou qualquer coisa que aconteceu comigo antes de chegar na instituição é uma benção, porque posso escolher meu nome e assim tomar as rédeas de meu destino.
     As vezes gasto meu tempo, que é muito aqui, pensando em uma alcunha que poderia definir minha personalidade. Como isso é importante e definitivo, não posso me apressar. Por enquanto vou aceitar o que me deram logo que cheguei. Prazer, Rubão ao seu dispor. Ou poderia ficar sem nome mesmo, como um personagem do Saramago. Eu seria o rapaz que esqueceu o nome. Iria ser engraçado: O quarto onde o  rapaz que esqueceu o nome dorme é pequeno, talvez muito menor do que as dúvidas que envolvem seu ser.
     Bom, você deve estar se perguntando como um cara que não lembra nem quem é pode citar o grande escritor português ganhador do Nobel? Vou explicar, ou melhor não vou. Só sei que me lembro de livros, filmes e músicas que um dia entraram na minha vida. O nome que escolheram pra mim veio do livro que encontraram comigo quando me encontraram, Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, do Rubem Fonseca. O título,que define o sonho, também poderia definir minha vida, que não passa de fragmentos de diálogos pela manhã, seguidos por um almoço à moda do exército, lembranças incompletas pela tarde e finalmente desespero e solidão ao anoitecer.
     Rubão, um bom nome, melhor ainda no aumentativo como escolheram, tem mais força, mais grandiosidade. É talvez eu fique com esse nome mesmo.
     A única certeza que tenho é que gosto e conheço literatura, por quê? Seria eu um professor de ginásio? Um crítico chato de lançamentos numa revista especializada? Um escritor marginal que só escreve nas paredes de seu quarto? Um diretor de cinema perito em adaptar obras? Ou apenas um mendingo que tinha entre suas muitas manias a de ler as coisas que encontrava antes de vender por quilo num ferro velho para poder pagar um prato feito no centro.
     Não vou pensar mais nisso, o que interessa é o que  sou agora e o que tenho que fazer, um cara de quarenta e poucos anos internado numa instituição mental puramente por não existir ainda um lugar para as pessoas que esquecem quem são, e sair daqui.
     Durante um ano e três meses observei atentamente a rotina do lugar, a segurança é bem feita, mas encontrei algumas falhas. Todo dia às oito horas da manhã um caminhão cheio de roupas sujas sai daqui rumo à uma lavanderia. Nunca revistam as roupas, se eu conseguir distrair o motorista enquanto eles embarcam a carga, poderei me esconder no meio dela, e finalmente tentar descobrir quem sou.
     Acordo as seis horas da manhã, vou até a cama de meu único amigo aqui dentro, o Robô Comida. É assim que ele se auto denomina, pesando cento e sessenta quilos, ele acha que é uma máquina cujo único objetivo é acabar com toda comida do mundo.
    Acorda Robô! Tenho uma missão especial para você hoje. Digo o cutucando.
    Robô Comida ligado e pronto. Estoque de matéria orgânica nutritiva em baixa. Urgência de reposição. Diz ele com sua voz mecânica de sempre, se levantando.
     Explico o plano para ele e ficamos a postos após ele exterminar meia dúzia de pãezinhos. Estou escondido atrás da pilastra próxima ao caminhão com todos meus pertences numa sacola de mercado, enquanto vejo o Robô se aproximar do motorista enquanto este espera que o funcionário traga outra remessa de roupa.
     Robô fez besteira, deixou o gás da cozinha aberto e não acha fogo para acender. Robô quer exterminar torta de frango, malvada torta de frango. Grita meu amigo para o surpreso motorista.
     Você não podia fazer isso Robô, alguêm pode se machucar. Vamos lá desligar isso. Respondeu o motorista que já o conhecia e sabia de sua sagrada missão.
     Assim que eles saem de vista corro para o baú do caminhão e me escondo atrás de uma pilha de mal cheirosos uniformes de internos. Logo ouço a voz do motorista dizendo que já ia sair, o caminhão estava cheio. Um click de porta fechada e a liberdade é toda minha.
     O caminhão estaciona dentro da garagem da lavanderia após uns vinte minutos de sacolejo. A porta se abre e posso ouvir o motorista se afastar para dentro da loja. Saio sorrateiramente  para um depósito dos mais variados tipos de roupas. Escolho uma calça jeans e uma camiseta, coloco em minha sacola e saio apressadamente pela porta ainda aberta.
     Me sinto como uma criança em seu primeiro dia de aula, tudo é diferente, novo. As pessoas parecem não notar meu sujo uniforme, mas todo cuidado é pouco. Entro em um boteco, digno de um conto do Nelson Rodrigues, apesar da hora já lá se encontra bêbados e algumas prostitutas à tomar o café da manhã depois de uma noite de trabalho duro.
     No banheiro, troco minha roupa enquanto leio os interessantes dizeres tão cuidadosamentes escritos nas paredes. Nesse tipo de lugar você pode encontrar de propostas homosexuais à pedido de emprego. Do lado de “Adoro garoto novo e bem dotado” temos “Faço serviço de pintor e pedreiro”. Alguém um dia deveria fazer um estudo linguístico disso, o material é riquissimo.
     Já bem mais apresentável que antes, saio agradecendo o dono do bar que com sua camisa de peito aberto e corrente de ouro serve um pingado.
     Pergunto em uma banca de jornal onde é o endereço  da livraria cujo carimbo encontra-se no meu livro. Depois de algumas explicações fico sabendo que não estou longe. Bom, afinal não tenho nenhum centavo comigo. Me dirijo para lá com a esperança de que alguém da loja me reconheça, afinal devo ter comprado o livro lá. Não é muito, mas é a única pista de meu passado que tenho.
    
     Chego à porta de uma grande e luxuosa livraria, vitrines reluzentes mostram os últimos lançamentos enquanto dois atendentes conversam animadamente lá dentro. Respiro fundo e entro, o maximo que pode acontecer é  eles nunca terem me visto na vida.
     Bom dia! Eu gostaria de uma informação. Digo pegando o livro em minha sacola. Enquanto o mais velho dos vendedores me olha perplexo.
     Não pode ser! Seu Natanael, é o senhor mesmo? Pergunta o velho que faz  cara de alguem que acabou de encontrar um bezerro de três cabeças.
     Natanael? Você me conhece? Me diz logo. Grito dentro da loja atraindo a atenção de alguns fregueses que folheavam livros sofregamente.
     É claro, seu Natanael. O senhor vinha sempre aqui comprar livros comigo. Depois sumiu, li no jornal que ninguem sabia o que tinha acontecido.
     Jornal? Deu no jornal que eu sumi? Por quê?
     Quando um dos maiores escritores brasileiros some de repente, a imprensa noticia. Depois de tanto tempo sem noticia já se acreditava que o senhor estava morto.
     Sou um escritor então... Qual é meu sobrenome?
     O senhor não sabe? ´Respondeu enquanto pegava um livro numa estante próxima e me entregava.
     Pude ver no livro de capa branca  duas mãos se tocando angelicalmente e os dizeres: O toque divino, Natanael Nogueira.
     Sei que essa situação parece estranha, mas eu perdi minha memória. Não lembro de nada, por isso preciso saber se você tem certeza do que está dizendo.
     Certeza absoluta, o senhor até autografou uns livros aqui. Disse ele abrindo a  capa do livro onde dentro podia se ver a assinatura do autor.
     Você tem uma caneta? Preciso ter certeza.
     O velho que agora mais calmo me parece muito simpático pega a caneta do bolso da camisa e me entrega. Assino Natanael Nogueira embaixo da assinatura já existente. Para minha alegria, as duas são idênticas. Sou um escritor best seller chamado Natanael.
     Depois de algumas explicações o solícito vendedor liga para a polícia, que depois de comprovar minhas digitais me leva até a frente de uma mansão, situada num bairro chique.
     Desço do carro e uma mulher loira muito atraente  e bem vestida aguarda com cara de aflita no portão.
     Achei que você estava morto. Como é que você some assim e me deixa cheia de problemas.
     Me desculpe, mas não me lembro de nada. Quem é você? Pergunto meio sem jeito.
     A polícia me avisou que você está confuso. Sou Helena, sua mulher. Responde ela me puxando para dentro da casa. Logo aquilo ali estaria repleto de reporteres, como percebi depois.
     A casa me lembra a do Gatsby do Fitsgerald, grandes lustres iluminam um hall que parece um misto de moderno com clássico. Uma casa com cara de inicio do século, mas com toques de arte nuveau Tudo me parece suntuoso, exagerado e desnecessário.
     Depois de tomar um banho num banheiro digno de cobertura de hotel, me visto em um armário que ocupa um comodo da casa. Para quem usava uniforme de manicomio, tá bom demais. Desço de elevador para o terreo, onde encontro Helena tomando um martini jogada em um luxuoso sofá.
     Me diz como eu era, a gente tem filhos? Como a gente se apaixonou? Pergunto para ela, que me olha com cara de surpresa.
     Filhos? Você deve estar brincando, você acha que eu sofro três horas por dia na academia para estragar tudo tendo um filho? Me poupe.
     Mas um casal que se ama precisa ter filhos, a concretização do amor entre eles. E afinal temos tanto espaço aqui.
     Acho que você não se lembra mesmo quem é. Por isso vou esclarecer umas coisas. A gente não se ama, nem nunca se amou. Você tinha vergonha da sua origem humilde, as pessoas te acusavam de novo rico. Só porque você fez fortuna com seus livros de uma hora para outra. Acho isso uma besteira, dinheiro é sempre bom. Não importa se veio de sua família rica ou se você ganhou vendendo remédio adulterado pra velhinho com cancêr. Ai, você resolveu se casar com uma moça de família rica, que soubesse se portar e fosse bonita. Eu, você me tirou da casa dos meus pais para ser seu bibêlo de luxo exibido em festas chiques. Nunca aconteceu nada entre a gente, é o trato. E afinal de contas, todo mundo sabe das suas amantes. Posso ficar com fama de mulher traída, mas você me paga muito bem pra isso.
     Nossa! Não parece algo que eu faria, não posso ter sido tão horrível assim. Disse atordoado.
     Você era e vai continuar sendo assim. Daqui a pouco essa crise de bom mocinho passa e você volta a ser o mesmo nojento de sempre. Preciso ir pra academia. Disse Helena saindo da sala com o copo na mão.
     Não sabia o que fazer. Tudo bem, não tenho uma vida conjugal feliz, mas ainda resta minha carreira. As pessoas admiram o que escrevo, vou me prender a isso.
     Pensando nisso vou até minha agenda, que estranhamente sabia onde estava, e disco o número de minha editora. Após uma rápida conversa, marco uma reunião para dali a pouco.
     Pego um dos três carros de luxo da garagem e sigo para o endereço em meio ao batalhão de reporteres que cercam meu carro na saída. Um prédio alto e imponente com janelas de vidro que tentam passar idéia de segurança.
     Por todo o trajeto até a sala de minha editora, sou tratado como se fosse o messias. Entro e dou de cara com uma balzaquiana vestindo um fino taier e segurando um cigarro entre dedos amarelos e magros.
     Puxa, que bom que você voltou. Isso vai representar um aumento significativo em nossas vendas. Já pensou em escrever suas experiencias nesse tempo. Já estou vendo até um filme, com galã de novela das oito em seu papel. Cospe ela entusiasmadamente.
     Foi difícil para mim, não sei se quero lembrar tudo.
     Quanto mais sofrido mais vende, como você me disse um dia. E nós temos um contrato para mais três livros, e seu prazo para entregar o próximo se encerra daqui a um mês.
     Impossível! Como vou escrever um livro em um mês?
     Você escreveu o “A espera da luz” em quinze dias. E vendeu três milhões de cópias no mundo todo. Tem tradução até pro arábe.
     Como escrevi uma obra literária em quinze dias?
     Vamos ser sinceros, você mesmo disse uma vez que sua literatura era a porcaria que os idiotas gostam de ler. Afinal você é um gênio nessa área, a idéia de dizer que você recebe um anjo que escreve por você foi brilhante. Até na escolha do nome, Natanael Nogueira. Um nome angelical e um sobrenome de coisa da natureza, madeira, confiavel e bela.
     Quer dizer que não me chamo assim, mas que merda é essa?
     Lógico que não, seu nome mesmo é Gerolino Rodolfo Silva. Você concordou comigo que nem mesmo os idiotas dos nossos leitores leriam algo escrito por alguem com um nome desses.
     Me desculpe, mas tenho um compromisso. Preciso ir, depois a gente se fala.
     Digo e saio apressado do prédio, deixo o carro e sigo a pé sem destino. Enquanto caminho vou pensando em que me transformei, ou melhor o que fui. Lutei tanto para voltar a ser isso?
    Os nomes! Tão diferentes, cada um com seu significado. Quem serei eu?
Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael? Gerolino, Rubão ou Natanael?
Gero...Rub...ou Nata? G...R...N...
   



     Não sei quem sou, não tenho um nome. A única coisa que sei é que me encontraram andando perdido pelas ruas sem memória, e me mandaram para um manicômio. Mas logo vou fugir daqui, para finalmente descobrir quem sou.

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